Memórias queimadas, passado dizimado
Costumamos ouvir que o brasileiro não tem memória, que somos um povo desmemoriado. Diante de alguns retrocessos que estamos vivendo atualmente e pela desconsideração dos governantes com os lugares de memória, não há como discordar.
Os lugares de memória, como museus, arquivos e monumentos, nos permitem cristalizar a memória de uma sociedade, de uma nação, onde grupos ou povos se identificam ou se reconhecem, possibilitando existir um sentimento de formação de identidade e de pertencimento.
Nos últimos seis anos, o descaso com a memória e o patrimônio nacional, nos fez perder três lugares de memória importantíssimos para a história brasileira:
Há três anos, o Museu Nacional virou cinza, queimando 200 anos de história e um acervo de mais de 20 milhões de itens. O museu era a mais antiga instituição científica do Brasil que, até setembro de 2018, figurou como um dos maiores museus de história natural e de antropologia das Américas. Fundado em 1818 por Dom João VI, o Museu Nacional foi instalado inicialmente na Praça da República, no Rio de Janeiro, reunindo o acervo legado da antiga Casa de História Natural, popularmente chamada “Casa dos Pássaros”. Em 1892, foi transferido para o Palácio de São Cristóvão, na Quinta da Boa Vista/ RJ, que anteriormente serviu de residência à família real portuguesa, de 1808 a 1821, abrigou a família imperial brasileira, de 1822 a 1889, e sediou a primeira Assembleia Constituinte Republicana, de 1889 a 1891. Lembro-me perfeitamente de quando fui visitá-lo com meus pais. Acredito que tinha em torno de dez anos e fiquei encantada com a coleção de múmias. Uma delas era a Princesa egípcia Kherima, que tinha cerca de 2 mil anos e trazia os dedos dos pés praticamente intactos. Infelizmente, não deu tempo dos meus filhos conhecerem esse tesouro nacional.
Outro incêndio que, há pouco mais de dois meses, pôs fim a um milhão de documentos da antiga Embrafilme como roteiros, arquivos em papel, cópias de filmes e equipamentos antigos, foi o do galpão da Cinemateca Brasileira, que fica na Vila Leopoldina, na Zona Oeste de São Paulo. Alguns tinham mais de 100 anos e seriam usados na montagem de um museu, para contar a história do cinema brasileiro. Mais uma memória queimada para sempre.
E o terceiro lugar, que visitei poucos dias antes de ser destruído pelo fogo e vai ficar para sempre na minha memória, é O Museu da Língua Portuguesa, inaugurado em março 2006 e incendiado em dezembro de 2015. O museu, que fica na Estação da Luz, um dos principais prédios históricos em São Paulo, foi reaberto no dia 29 de julho deste ano. Felizmente teremos novamente um lugar para celebrar a língua como elemento fundador da nossa cultura. Uma das experiências mais emocionantes que tive no museu foi a Praça das Línguas, uma espécie de ‘planetário do idioma’, homenageando a língua portuguesa escrita, falada e cantada em um espetáculo imersivo de som e luz. Que felicidade poder revisitar e poder levar meus filhos para fazer um mergulho na história e na diversidade do idioma falado por 261 milhões de pessoas em todo o mundo.
Esses lugares de memória, que viraram cinza, são o coração vivo da memória. E por que é tão importante mantê-los vivos? Respondo citando a historiadora Emília Viotti da Costa: “um povo sem memória é um povo sem história. E um povo sem história está fadado a cometer, no presente e no futuro, os mesmos erros do passado.” E acrescento: Um povo sem memória é um povo sem cultura e identidade.